quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Há muitos Andrés espalhados no país

"O André foi o melhor estagiário que passou por aquela redacção desde que cheguei. O André trabalhou dia e noite, fez sábados, domingos e feriados. Dispensou folgas, esqueceu horários, correu, transpirou, apanhou chuva, frio e voltou sempre com aquele sorriso de quem ama o jornalismo. O André fez reportagens brilhantes: entrevistou ministros, pescadores, sem-abrigo, artistas de circo, sempre com o mesmo rigor, a mesma dedicação, o mesmo profissionalismo. O André aprendeu a editar, a legendar, a sonorizar e a escrever como poucos. O André será um grande jornalista deste país, se o país deixar. O André foi-se embora no dia de Natal, depois de mais uma jornada de intenso trabalho na redacção. Acabou o estágio.

A crise. A crise. A “crise diz” que não há espaço para o André numa empresa com nove milhões de lucro. O André não é bom. O André é muito bom. Mas ser muito bom não chega num país liderado por medíocres. E é este o drama da geração do André. Esqueçam esse eufemismo da “geração à rasca”. Esta é a geração sem futuro num país liderado por uma geração parida pelas “vacas gordas” do cavaquismo à qual o guterrismo deu de mamar. É esta, sim. É esta a geração que mostrou o rabo indignada contra o aumento de meia-dúzia de tostões nas propinas. Tão rebeldes que eles eram.

Chegou ao poder a geração do “baixa as calças”, a geração jota. É a mesma coisa. Quando não havia emprego, sobrava o partido. Quando não havia partido, sobrava o amigo do partido, ou uma sociedade de advogados. E foi andando assim, nos anos loucos do Portugal do “Progresso” de Cavaco Silva, ou no país da “Razão e Coração” de Guterres. Foi-se o Progresso, ficou o monstro do Estado cheio de parasitas. Faltou a razão e o coração começou a vacilar. Já instalada nos corredores do poder, a geração habituada a baixar as calças, indignada claro, calou-se e deixou-se embalar. O poder… O poder ali tão perto.

Hoje, é a geração que cresceu no tempo das “vacas-gordas” que vem falar de flexibilização laboral. Que fale. Que avance para a reforma do mercado de trabalho, sem medo, mas que entenda que isso só faz sentido se for para proteger os “Andrés” deste país. O problema é que a geração do poder, habituada a baixar as calças, fala pelos livros: leu por aí qualquer coisa sobre isso. Sopraram-lhe.
É disso que os abutres gostam: de quem baixa as calças e não sabe muito bem do que fala. É aqui que mora o perigo.
A reforma da legislação laboral deve ser feita em nome dos miúdos como o André e não para desafogar empresas que em dez anos acumularam mais de 500 milhões de lucro. O ponto de honra tem de ser outro: valorizar o mérito e conceder oportunidade a quem mostra que tem valor. Dói? Vai doer a alguém, claro. Vai doer a quem está há anos encostado, por preguiça, a fazer os serviços mínimos na empresa, a quem não acrescenta valor, a quem não veste a camisola, nem está disposto a inovar e a tentar fazer diferente todos os dias. A esses vai doer. Que doa!

Essa reforma deve ser feita tendo por base a ideia de que um estagiário como o André, brilhante, depois de seis meses a pagar para trabalhar, não pode não ser absorvido por uma empresa que dá nove milhões de lucro. Não pode. Doa a quem doer. Se para isso é preciso flexibilizar o despedimento do medíocre, do preguiçoso, do incompetente, vamos a isso. Um país que desperdiça a geração do André é um país condenado. Estes miúdos já não exigem um emprego para a vida. Querem apenas uma oportunidade.
Bem, deixemo-nos de utopias. Quando o poder é financeiro e os líderes medíocres, já toda a gente percebeu onde é que isto vai parar. Os deputados que alteram a Lei trabalham nas sociedades de advogados que prestam serviços às empresas interessadas em despedir. Está tudo dito. Um pouco como o contrato da barragem do Tua. O ministério do Ambiente tutela parte do processo e o contrato de concessão com a EDP, que pressupõe uma indemnização de quase 100 milhões de euros em caso de quebra, tem sido seguido pela antiga firma de advogados da ministra.

Deixemo-nos de utopias, de facto. Esta será mais uma reforma perdida para a maioria. O André continuará a enviar currículos. As empresas vão aproveitar a crise e a Lei. Um dia, o André acordará cansado e sem forma de continuar a trabalhar de borla em nome do sonho. Ou emigra, ou acaba na caixa do hipermercado para pagar a renda da casa que partilha com os amigos. “Não há drama”, grita a geração do poder. Pois não. Nem futuro."
Jornalista, Filipe Mendonça

3 comentários:

  1. Fogo, realmente é essa a realidade que vivemos . Pessoas como este jornalista é que deveriam estar sentadas na AR. Porque este sim, não mente em relação a real situação. Sabe que estamos num país perdido, completamente sem futuro, cuja solução resume-se a emigração ou a um emprego precário . É ridículo ! Precisavamos de mais pessoas assim a frente do país . A dar força, animo e a ser realista .

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  2. Muito realista. Muito triste e desesperante. Mas infelizmente, e sem tirar nem por, são estas as oportunidades que nos são concedidas pelo país. São estas as recompensas que recebemos por trabalhar duro. E são estas as perspectivas que temos depois de andar anos e anos a estudar e a lutar por um espacinho no mundo laboral. Hoje já não há sonhos, há necessidades. E há a lei do derenrasca, em que já não trabalha aquele que sabe fazer, aquele que tem o perfil de. Trabalha aquele que tem conhecimentos, aquele que nasce com o rabinho virado para a lua, e que tem a (in)felicidade de arranjar cunhas para ser salariado. Gostava muito de poder acreditar que este panorama vai mudar, mas já não me chega cruzar os dedos nem comer passas na meia-noite do ano novo. Infelizmente começo a interiorizar que esta decadência ainda não bateu no fundo, e veio para ficar. :( *

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  3. é, de facto, um dos melhores textos que li nos últimos tempos... infelizmente, não triste e real!

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